Princípios Constitucionais na execução da pena
Originalmente postado em: http://www.justificando.com/2014/12/10/principios-constitucionais-na-execucao-da-pena/
Princípio da Dignidade Humana
O tratamento dado ao respeito a dignidade humana na Constituição de 1988 erigiu o tema como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro.
Entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito, artigo 1o, incisos I e III, a dignidade humana fica aliada a cidadania consagrando-se com um dos princípios[1] fundamentais da nossa democracia.
Na verdade o respeito a dignidade humana, estritamente ligado aos direitos e garantias fundamentais, faz parte de um arcabouço de princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e valores éticos, conferindo suporte axiológico a nosso sistema jurídico.
Concebido fundamentalmente como um valor, o postulado constitucional da dignidade da pessoa humana firma seus alicerces como verdadeiro sustentáculo à construção de diretrizes para todo o sistema jurídico, de forma tridimensional, como estruturado por Antonio Enrique Pérez Luño:
“Os valores constitucionais possuem uma tripla dimensão: a) fundamentadora – núcleo básico e informador de todo o sistema jurídico-político; b) orientadora – metas ou fins pré-determinados, que fazem ilegítima qualquer disposição normativa que persiga fins distintos, ou que obstaculize a consecução daqueles fins enunciados pelo sistema axiológico constitucional; e c) crítica – para servir de critério ou parâmetro de valoração para a interpretação de atos ou condutas.” [2]
Na concepção de Alexandre de Moraes o princípio da dignidade humana, apresenta dupla previsão:
“Primeiramente prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. Esse dever configura-se pela exigência do indivíduo respeitar a dignidade do seu semelhante tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria”.[3]
No campo do Direito Processual Penal, a influência direta do fundamento da dignidade humana e dos direitos fundamentais é intensa e atinge diretamente, não somente todas as fases do processo, mas também a execução da pena.
No âmbito do Direito Penal, no que tange à aplicação e cumprimento das penas privativas de liberdade, o princípio da Dignidade Humana faz surgir a necessidade da humanidade da pena.
Os direitos e garantias fundamentais aliados ao respeito a dignidade humana tornaram-se um espelho para a formatação de todo um novo critério de interpretação das normas do ordenamento jurídico brasileiro, levando José Afonso da Silva a afirmar:
“Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais. Concebida como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais, observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana a defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir uma ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se trate de direitos econômicos, sociais e culturais.” [4]
No mesmo sentido, ressaltamos o posicionamento de Luis Roberto Barroso:
Modernamente, já não cabe negar o caráter jurídico e, pois, a exigibilidade e acionabilidade dos direitos fundamentais, na sua tríplice tipologia. É puramente ideológica, e não científica, a resistência que ainda hoje se opõe a efetivação, por via coercitiva, dos chamados direitos sociais. Também os direitos políticos e individuais enfrentaram, como se assinalou, a reação conservadora, até sua final consolidação. A afirmação dos direitos fundamentais como um todo, na sua exeqüibilidade plena, vem sendo positivada nas Cartas Políticas mais recentes, como se vê do artigo 2º da Constituição Portuguesa e do Preâmbulo da Constituição Brasileira, que proclama ser o país um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais.”[5]
Assim, no processo de redemocratização do Brasil na década de 1980, o debate na Assembléia Nacional Constituinte, em relação aos Direitos Humanos, foi fundamental para a inserção do País na rota da tendência mundial de respeito à valores éticos fundamentais.
1.1. O Princípio da Dignidade Humana e execução da pena privativa de liberdade
Desde a edição da reforma da parte geral do Código Penal, através da Lei 7209/84, tem havido um crescente movimento internacional em prol da minimização dos efeitos das penas criminais.
O Instituto da Ásia e do Extremo Oriente para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente formulou um dos primeiros estudos relacionados ao assunto.
Assim que redigidas as Regras Mínimas da Nações Unidas para a elaboração de medidas não-privativas de liberdade, o 8.º Congresso da ONU recomendou sua adoção, que ocorreu em 14 de dezembro de 1990, pela Resolução 45/110, da Assembléia Geral, com a denominação de Regras de Tóquio.
Os cinco objetivos fundamentais das Regras de Tóquio, que agregam as chamadas “Regras Mínimas” das Nações Unidas sobre as Medidas Não-privativas de Liberdade, estão devidamente delineados nas Regras 1.1 e 1.2, nos termos seguintes:
“1.1. As presentes Regras Mínimas enunciam um conjunto de princípios básicos para promover o emprego de medidas não-privativas de liberdade, assim como garantias mínimas para as pessoas submetidas a medidas substitutivas da prisão.
1.2. As presentes Regras têm por objetivo promover uma maior participação da comunidade na administração da Justiça Penal e, muito especialmente, no tratamento do delinqüente, bem como estimular entre os delinqüentes o senso de responsabilidade em relação à sociedade.”
A Constituição Federal de 1988 determinou a aplicabilidade imediata das regras e garantias fundamentais nos termos do artigo 5º, parágrafo 1º.
Os princípios da dignidade humana e outros estão inseridos neste contexto e seguem tendência mundial, como antes observado.
A Constituição Portuguesa de 1976, no artigo 18, determina:
“Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.”
A Constituição da Espanha (1978), na mesma linha de pensamento, no artigo 9º, assevera:
“Corresponde aos poderes públicos promover as condições para que a liberdade e a igualdade do indivíduo e dos grupos que integram sejam reais e efetivas; remover os obstáculos que impeçam ou modifiquem sua plenitude e facilitar a participação de todos os cidadãos na vida política, econômica, social e cultural.”
A Lei Fundamental Alemã de 1949, também prevê o seguinte:
“Os direitos fundamentais constituem direito diretamente aplicável para os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.”
1.2. Dignidade humana e questão carcerária
Conforme exposto, é de rigor o respeito a Dignidade Humana em todos os setores.
A questão carcerária, inserida neste contexto, representa um objeto de estudo e preocupação, mesmo com o reconhecimento de que a legislação, principalmente a Lei de Execução Penal[6], figura como uma das melhores do mundo contemporâneo.
Parece cada vez mais evidente que a problemática se encontra na aplicação da legislação. As condições do cumprimento da pena privativa de liberdade demonstram, no campo carcerário, que a Constituição está longe de ser cumprida.
Para pleno entendimento do princípio é preciso ter presente que o cumprimento da pena, com respeito à dignidade da pessoa humana, não enfraquece a função punitiva que ela agrega, exatamente porque deve estar intimamente ligado ao princípio da individualização da pena.
2. Princípio da Individualização da Pena
O princípio busca considerar as características peculiares da pessoa humana condenada, aliando-as ao crime que cometeu, visando um cumprimento de pena adequado a estes dados.
Individualizar a pena tem o significado de aplicar a determinado agente a resposta penal necessária e suficiente para reprimir e prevenir o crime.
Hoje o princípio é simplesmente registrado na Carta Magna[7] que remete à lei ordinária a disciplina da matéria, estabelecendo os critérios da individualização.
2.1. Cominação, aplicação e execução
Para analisar, ainda que sinteticamente, o tema, é necessário observar a cominação da pena, sua aplicação e sua execução.
Um primeiro momento é o legislativo, devendo haver com a fixação em lei, para cada tipo penal uma ou mais penas proporcionais à importância do bem tutelado e à gravidade da ofensa.[8]
Encontramos no item 49 da Exposição de Motivos da Parte Geral do Código Penal, redigidas pelo então Ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel, que:
“O projeto busca assegurar a individualização da pena sob critérios mais abrangentes e precisos. Transcende-se, assim, o sentido individualizador do Código vigente, restrito à fixação da quantidade da pena, dentro dos limites estabelecidos, para oferecer ao arbitrum iudices variada gama de opções, que em determinadas circunstâncias, pode envolver o tipo de sanção a ser aplicada.”
A aplicação da pena requer uma adequação à situação fática permitindo a individualização judicial, que seria o momento seguinte materializando-se durante os momentos de aplicação e da execução.[9] Em sua fase de execução concretiza-se a terceira etapa com a chamada individualização executória. Tal princípio deve ser entendido como um todo, sendo a execução sua última etapa, não pode se desligar dos momentos anteriores.
Na fase de execução da pena, embora mantidos os liames mencionados, se estabelece um novo processo que deve seguir as regras legais vigentes.
O processo de execução, ao menos para condenado, é um meio tendente a recuperar sua liberdade. Na busca deste objetivo natural de liberdade o condenado se utilizará de todos os instrumentos legais disponíveis. Para tanto, devem a Lei de Execução Penal e as demais garantias do sistema constitucional, estarem em consonância para que o condenado possa demonstrar, através de suas condições pessoais, que é um indivíduo com condições particulares físicas e psicológicas, merecedor de uma nova oportunidade.
2.2. Individualização executória e sistema prisional ressocializador
Não é possível uma perfeita individualização da pena com o cumprimento de reprimendas desiguais, inclusive na espécie, no mesmo espaço físico.
O Conselho de Cidadania do Sistema Penitenciário, pertencente à Secretária de Administração Penitenciária de São Paulo, em parceria com a Organização Não-Governamental Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, com a finalidade de atrair investimentos particulares para o trabalho do preso, divulgaram em 2001, um perfil das unidades prisionais brasileiras:
“A Casa de Detenção destina-se à custódia de réus que estejam respondendo a processos perante a justiça criminal e daqueles que tenham sido autuados em virtude de prisão em flagrante. As Penitenciárias destinam-se ao cumprimento, por presos do sexo masculino ou feminino, de penas privativas de liberdade em regime fechado ou semi-aberto, podendo ser de segurança máxima, média e mínima. Todas possuem espaços para instalação de fábricas e oficinas que podem ser exploradas pela iniciativa privada. Na Casa de Custódia e Tratamento deve ocorrer o cumprimento da medida de segurança e a realização de exames de sanidade mental. Pode ainda receber presos que não se adaptarem ao regime a que estiverem sujeitos, para tratamento, bem como internos dos hospitais de custódia e tratamento, a título de estágio experimental ou por inadaptação ao regime penitenciário. O Centro de Readaptação serve para a receber em regime fechado, presos condenados, do sexo masculino, de alta periculosidade, ou que tenham revelado inadaptação ao trabalho reeducativo nos respectivos estabelecimentos onde se encontram. O Hospital de Custódia e Tratamento é destinado ao cumprimento de medida de segurança, para inimputáveis, do sexo masculino e feminino com realização de exames de sanidade mental. No Hospital Penitenciário ocorre o tratamento ambulatorial de presos. As Penitenciárias compactas foram construídas para receber os presos da Casa de Detenção de São Paulo, após sua desativação. São onze estabelecimentos de segurança máxima, com capacidade para 768 presos, localizadas no interior do estado; possuem espaços próprios para instalação de pequenas fábricas e oficinas que podem ser exploradas pela iniciativa privada. .Os Centros de Detenção Provisória, somente existentes no estado de São Paulo, são prisões de segurança média, para presos provisórios, com capacidade para 768 presos. Os Centros de Ressocialização, também característicos de São Paulo, são prisões de segurança média, para 210 presos, administrados em parceria entre Estado e sociedade civil. Cada um possui espaço para quatro oficinas, que podem ser exploradas pela iniciativa privada. Na Colônia Agrícola ou Industrial deve ocorrer o cumprimento do estágio final, em regime semi-aberto, da pena de privação de liberdade”. [10]
Infelizmente a destinação e capacidade das unidades prisionais não são devidamente cumpridas. As vagas em regime semiaberto e aberto são escassas, sendo comum o desrespeito ao sistema de progressão de regime previsto.
Conclusão
O Direito Brasileiro, em matéria Processual Penal e Penal, desde a edição da Constituição em vigor, por meio das leis e reformas pontuais, não está observando de maneira estreita os mencionados princípios, não percebendo, diante deste descaso e problemas sociais, que pode colocar em risco o próprio Estado Democrático de Direito. A alta influência de facções criminosas em unidades prisionais é o triste resultado que constatamos em razão destas omissões.
A escassez de unidades prisionais, desvios na sua destinação, e ainda, desrespeito da capacidade prevista, impossibilita o sistema progressivo, essencial para a ressocialização.
A sociedade precisa ser inserida, com campanhas contínuas de conscientização, no processo de retorno do egresso para seu convívio.Vitor Monacelli Fachinetti Júnior é membro do Conselho Penitenciário Estadual; Mestre e Doutorando em Direito Processual Penal pela PUC/SP; Professor Universitário; Advogado Criminalista.